Tuesday, September 23, 2008

Presságios

Estava ali, havia já um par de horas. Por si, não queria ver nada, porque era melhor nada ver. Preferível não tivesse olhos, nem ouvidos. Que o tempo parasse, seria ainda mais desejável. Sabia que uma desgraça estava por vir. Era por isso que deixara a casa e fora buscar refúgio nas pedras da margem oeste da ilha. Ali, pensou, estava a salvo de presenciar de novo o que já vira antes. A sombra da tipuana o protegia do sol forte e podia sentir no rosto o vento que vinha do sul. Precisava de paz e precisava que aquele dia terminasse logo. De preferência, sem que o tempo passasse.

Das outras duas vezes, ficara em casa e lembrava muito bem o que se passara. Fora Maria Rita quem lhe ensinara sobre os agouros. Dois já tinham se provado verdadeiros. Queria muito que ela estivesse errada quanto ao terceiro, mas não era capaz de apostar nisso.

Olhando para o sul, notou um pequeno ponto se movendo sobre a água, trazido pela corrente. Girou o rosto e mirou por sobre as copas das árvores da ilha em frente. Um avião mostrava as garras indo na direção do aeroporto. Desviou o olhar com medo que o agouro decolasse em direção à aeronave. “Que pousem em paz!”, pensou.

A primeira vez que aconteceu foi também a primeira vez que ouviu Maria Rita falar daquilo. Estavam os dois tomando chimarrão no avarandado da casa. Levou um susto quando um besouro passou zunindo próximo ao seu ouvido. E tomou outro, quando ela levantou de um salto e desatou a falar, olhando para o inseto que seguia vôo em direção aos arbustos do jardim: "Credo! Volta pra quem te mandou. Diz que não me achou. Eu te arrenego. Cruz credo!" Ficou agitando os braços para ele: "Fala isso! Repete o que eu te falei". Ele ficou calado. Calado e atônito, olhando pra ela com cara de assombro. Mais ainda depois que ela sentenciou: "Zumbido de besouro no ouvido é sinal de mau agouro". “Bobagem!”, pensou, e fez um gesto desinteressado como quem quer mudar o assunto.

Isso se deu antes do almoço. No meio da tarde, quando foi sacudir o avô da sesta, não conseguiu acordá-lo, nunca mais. Foi assim que aprendeu a sofrer a culpa de não rezar o ditado da Maria Rita.

Após a missa do sétimo-dia, ela veio puxar assunto. Referiu sutilmente que havia prevenido sobre o agouro. Como se ele precisasse ser lembrado, como se a culpa não batesse ponto todos os dias. Seguiram falando sobre o avô. Sentiu-se um pouco aliviado ao ouvir dela: "Culpa não serve pra nada. Larga isso". Depois, ela disse pra ele ter cuidado com outros dois sinais. O primeiro, ela falou, é quando um cachorro cava um quintal. É sinal certo de que uma sepultura terá de ser aberta. O diálogo ainda estava vivo em sua memória.

Longe, um cachorro latiu. Os ladridos invadiram-lhe a mente, seqüestrando lembranças. Estava saindo de casa numa manhã de domingo. Cruzando a porta principal, avistou Paco – cruza de ovelheiro com vira-lata – cavando de forma ávida a terra fofa, perto do portão principal. Ficou entorpecido. A frase transpassou sua mente, paralisando-o por instantes. "Quando um cachorro cava um quintal, é certo que uma sepultura será aberta." Gritou "Pára, Paco!", e arremessou um vaso de violetas na direção do cão. Precisava descobrir como anular o agouro. Maria Rita haveria de saber a reza. Começou uma corrida sobressaltada em direção à casa dela. Uma corrida curta de quinhentos metros, na direção norte.

Mal avistou o muro, começou a chamar por ela. Que lhe desse a reza; que, por amor de Deus, lhe desse a reza. Nem usou o portão. Pulou o muro baixo e, encontrando a porta destrancada, invadiu a residência, agora clamando por Maria Rita. Só parou quando a encontrou. Então, chorou por ela. Quando a polícia chegou para registrar o latrocínio, ele bem que tentou levar o delegado para ver a cova no jardim da sua casa. O delegado disse que sim, mas nunca foi.

O vento soprou mais forte, balançando os galhos da tipuana. O ponto que descia o rio crescera e agora era um barco, um skiff de competição trazendo uma mulher. Estava então a não mais do que cinco metros da margem. Com a cabeça pendendo para o lado, parecia desfalecida. Um pânico se apossou dele. Sabia bem por que estava ali: fugia do terceiro agouro, que lhe havia sido contado por Maria Rita, no dia da missa do avô. O agouro que se anunciara duas horas antes, quando saiu de casa numa corrida aflita, para vir se isolar do mundo nas pedras da margem oeste da ilha. Maldito barco.

Arrumava livros na estante da sala. No player, alguém pedia “um machado pra quebrar o gelo-ô e uma chance pra tentar viver sem dor". Ele entrou pela janela por onde também penetrava o revigorante ar fresco da manhã. Quando deu por si, estava diante dele. A voz de Maria Rita soou clara, em videoteipe: “Se um beija-flor invade a casa é sinal de mau agouro”. Por isso estava ali, vendo a moça descendo o rio num barco errante. Pensou ter ouvido um murmúrio, como um pedido de ajuda.

Sem pensar, jogou-se na água para fazer o resgate. Pulou em pé, como quem pula no vazio. Vestia jeans, tênis e camisa pólo. Ao cair na água, seus pés foram encontrar o fundo lamacento e enterram-se nele até os joelhos. Lutou contra a armadilha. Debateu-se, forçando para se desvencilhar, sentindo o ar ausente apertando o peito. Aos poucos, os movimentos vigorosos diluíram a lama na corrente e ele soltou-se da terra que o engolia. Livre do lodo, impulsionou-se com força na direção da claridade. Em braçadas desesperadas, buscou a superfície. Quando emergiu ansiando por um quinhão de ar, sua cabeça golpeou o casco do skiff. Um baque seco, único, definitivo. A água ao redor rodou enegrecendo. Sequer pôde sentir o gosto do caldo barrento transitando pela boca em direção aos pulmões. Sombras envolveram seu corpo como serpentes famintas e sugaram toda a luz que havia.