Dias de enorme sacrifício. Muita dor física e moral. Não pode ir ao parque de muletas. Vai sem, a carne sente. Não pode evitar ir, os pensamentos são horríveis. O cara é agente duplo, petista e democrata. Está metido com patrões do tráfico. Talvez seja perigosíssimo. Certamente é. Custou um ano de vida mais a luxação no tornozelo e o caminhar comprometido por meses. Talvez um maluco que pague do próprio bolso para ser observado. Não interessa.
Joe treina um manquejar digno andando de lá para cá como bicho na jaula. O aparelho, pequeno apartamento perto do parque ao qual fora obrigado pelo serviço, ganha um espelho grande. Joe é perfeccionista. O disfarce é todo inglês. As botas de montaria são inapropriadas, mas firmam o pé ferido. Seria notado com toda certeza, mas nenhuma relação com o palhaço. Calças culote não são comuns. Chapéu Sherlock Homes também não. A polícia, se chamada, nem vai atrás. Tudo será queimado antes do imundo começar a vomitar sangue. Antes do cara se sentir mal.
Num manquejar elegante adentrou ao café. As mesas na rua são o objetivo. Chegou antes. Esteve no parque. Pela primeira vez saiu com o sujeito ainda lá exibindo a camisa. Entrou e escolheu uma revista inglesa. Está em pé simulando atenção a um artigo qualquer. Nem dez minutos e o cara senta-se à mesa de sempre, a posição de sempre, o jornal de sempre. Lê os quadrinhos e passa os olhos sobre o resto. Pede o café e corta o charuto.
- Desculpe, diz Joe, sorrindo como ingleses não usam sorrir, não pude deixar de reparar no Lancero Laguito. É conhecedor? A figura é engraçada, ao mesmo tempo interessante e lamentável. O chapéu ridículo completam dois metros de altura cujo objetivo imediato parece ser transportar um charuto também enorme, um Corona Grande que é, no ato, cortado com habilidade. É recebido com um sorriso. O tabaco os uniu. Um vício que mata, pensou Joe, esperando.
- Sim! É um Lancero! E o seu um Corona! Sente-se, não há muitos apreciadores hoje em dia. Um café? Não espera pela resposta e vira-se para pedir que sirvam o novo amigo. Joe é rápido, o veneno já está na xícara. Dissolve ligeiro no calor. Não tem gosto que se perceba.
A conversa engrena logo. Charutos e pessoas que fumam charutos. Coisas sem importância, coisas agradáveis. Papo sem brilho, mas cordial e simpático
Falavam de umas coisas e outras, café bom lá na rua tal, excelentes bolinhos, meninas bonitas, novinhas... o cara também conhecia Nabokov. E vai daí isso, vem de lá aquilo, o café é consumido e o quase cadáver comenta:
- Coisas absurdas acontecem. Quer saber? Faz mais de ano que venho quase diariamente ao parque sempre com uma camisa diferente apenas porque afirmei que seria capaz de fazer isso e minha filha duvidou. Dá para acreditar? Mais de ano já, mais de trezentas camisas...
Um relâmpago paralisante do rabo a nuca. Problema de consciência imediato e de primeiro grau. Matou o cara porque o estúpido tinha feito uma aposta com a filha. Já para o hospital e o conhecimento da natureza do veneno salvariam a criatura com a mais absoluta certeza.
Joe não consegue falar. Aquele cara ali - na frente dele - bom papo, sujeito de bem com a vida, feliz como possível, camarada no café onde já é freguês habitual, simpático e bom de gorjeta, morre hoje na certa. Por uma série de motivos tolos, entre os quais ele, Joe. Que bosta! O que dizer? Uma tentativa de assassinato de brincadeirinha? Nada. Ambas as vidas seriam vasculhadas. Dor de barriga para o cara. Emagrecimento rápido. E cadeia, talvez a vida toda, para Joe. Botariam a mão nele e o que fazia para viver já tinha incomodado muita gente. O cara podia até não ser nada, mas Joe tinha trabalhado para gente ruim. Ser identificado era a condenação. Não precisava da lei para ser terminado.
Pensa rápido e ao bater o pé no chão, o esgar de dor é verdadeiro, convincente. O sujeito, prestativo, pergunta o que foi e quer ajudar. Entre gemidos, simulando que a dor é nas costelas, Joe pede um hospital. Quebrou num jogo de praia. Frescobol. Caiu sobre uma caixa de cerveja vagabunda. Não queria jogar, mas insistiram. Não para de falar, vai inventando coisas doidas para ter tempo de pensar. Como fazer? O táxi se aproxima do hospital. Chega.
Em duas horas o cara começará a passar mal. Joe já nem sente o pé, a adrenalina corre e a verdade da situação cai na cara dele. Se salvar o cara está condenado. Continua sem o que falar, mesmo na emergência vai ter de se explicar. A roupa esquisita já não disfarça, identifica. Comprada lá, pelo sujeito aquele que raramente vai, mas outro dia esteve aqui e levou apetrechos de palhaço. Houve planejamento. Tentou lembrar se envenenamento é crime hediondo, mas nem faz diferença. Não pode entrar no hospital.
Esse puto fica aqui e a sorte começa a jogar. Encaixa a soqueira com mão ainda no bolso. É certeza que um corpo caído no pátio de entrada da emergência vai ser atendido e observado. Vai garantir que terá atenção quebrando-lhe o cara. Talvez o cara comece a se borrar antes de acordar. Se houver um médico esperto, se salva. Joe simula mais dor e para. Está apoiado no braço direito do cara.
O soco é espetacular. Fraturou o maxilar em dois lugares e o corpo vai ao chão como um poste abatido. A cabeça bate antes. Um som cavo e molhado. Joe ouve já correndo. Havia gente, mas Joe sabe que pessoas reagem apenas depois de pensar algo que justifique o inesperado. O viram correr, provável que até dar o soco. A fantasia de inglês é ridícula, mas cumpria o papel de chamar atenção para o que ele não era. Quando alguém entende que o cara foi agredido por um maluco de calça culote e boina xadrez, já está na outra quadra, sem chapéu, a fralda enorme da camisa escondendo os culotes. Está calmo e pegando um táxi.
O socorro chega e o corpo é recolhido já sem vida. Quebrou a cabeça. Concussão.
No aeroporto, Joe lê estarrecido sobre o milionário morto a socos no pátio do hospital. Ontem. A coisa incomoda. Não era para morrer. Não precisava ter feito nada. Sem atenção ao que o cerca, coisa que não é comum, não vê o grupo que já conhece de fotos nas colunas sociais. Marido, mulher e filhos. Uma das crianças agarra a saia da mulher:
- Mãe, o vô Humba vêm buscar a gente?
- Duvido que não venha, está sempre em volta. O pai responde ríspido. Está visivelmente contrariado. Não tinha recebido nada. Nenhum mail informando do descumprimento da bobagem das camisas.