Saturday, October 04, 2008

Cicatrizes Deformantes(I)



O processo de viver resultou em uma casca bem confortável. O bicho está tranqüilo, seguro. Aprendeu que pensar, via de regra não serve para nada e, quando necessário faz isso suficientemente bem. Com alguns sobressaltos: a chaleira está no fogo e ele, dando passagem a mim, está escrevendo. É perigoso. Burro.

Tenho que conceder. Se a casa queimar, fico sem substrato. Vou lá.

Nada queimou, já restabeleci os níveis exagerados de cafeína que considero adequados a sobrevivência e permitem que as solicitações orgânicas, mesmo que vícios, não perturbem muito.

O dia chuvoso sem parar é próprio para suspender todos os movimentos. Tenho a disposição todos os motivos pelos quais poderia me atrever à intempérie, ao barro. Em compensação, não sair me conecta ao mundo.

Isso lembra convivência. Bem de longe, mas lembra. Pois então, embarquei numas de considerar as listas, disponíveis aos magotes tanto quanto bogs, convivências sociais tempestuosas mesmo quando amigáveis. Claro que tento escrever direito e, do meu jeito, me exibir bastante. Não estou cobrando nada para isso.

Sucede que é preciso uma qualidade especial, que não tenho, para a compreensão dos motivos pelos quais um elogio que receba levante uma onda indignada de ressentimento.

Aqui a cicatriz deformante: incomoda fazer bem algo que a outrem ofende por ser bom. Porque provavelmente o bosta gostaria de ter feito. Algo como disputar uma prova de natação e ficar com o que para o concorrente seria uma medalha e para mim é só uma latinha. É o mais próximo da culpa que aceito chegar e não gosto.

Aqui, melhor.

Back to Li Po

Uma vez Li Po caiu do barco. Mas Li Po, a exemplo do Grande Líder, nadava.

Enquanto Li Po braceava, saudoso da margem, pensou em nunca mais se atirar a paixões.

Se Alphonsus tivesse realmente se interessado. Isso não lhe passaria. Ismalia não disse nada.

Alphonsus nem conheceu Li Po.

Tuesday, September 23, 2008

Presságios

Estava ali, havia já um par de horas. Por si, não queria ver nada, porque era melhor nada ver. Preferível não tivesse olhos, nem ouvidos. Que o tempo parasse, seria ainda mais desejável. Sabia que uma desgraça estava por vir. Era por isso que deixara a casa e fora buscar refúgio nas pedras da margem oeste da ilha. Ali, pensou, estava a salvo de presenciar de novo o que já vira antes. A sombra da tipuana o protegia do sol forte e podia sentir no rosto o vento que vinha do sul. Precisava de paz e precisava que aquele dia terminasse logo. De preferência, sem que o tempo passasse.

Das outras duas vezes, ficara em casa e lembrava muito bem o que se passara. Fora Maria Rita quem lhe ensinara sobre os agouros. Dois já tinham se provado verdadeiros. Queria muito que ela estivesse errada quanto ao terceiro, mas não era capaz de apostar nisso.

Olhando para o sul, notou um pequeno ponto se movendo sobre a água, trazido pela corrente. Girou o rosto e mirou por sobre as copas das árvores da ilha em frente. Um avião mostrava as garras indo na direção do aeroporto. Desviou o olhar com medo que o agouro decolasse em direção à aeronave. “Que pousem em paz!”, pensou.

A primeira vez que aconteceu foi também a primeira vez que ouviu Maria Rita falar daquilo. Estavam os dois tomando chimarrão no avarandado da casa. Levou um susto quando um besouro passou zunindo próximo ao seu ouvido. E tomou outro, quando ela levantou de um salto e desatou a falar, olhando para o inseto que seguia vôo em direção aos arbustos do jardim: "Credo! Volta pra quem te mandou. Diz que não me achou. Eu te arrenego. Cruz credo!" Ficou agitando os braços para ele: "Fala isso! Repete o que eu te falei". Ele ficou calado. Calado e atônito, olhando pra ela com cara de assombro. Mais ainda depois que ela sentenciou: "Zumbido de besouro no ouvido é sinal de mau agouro". “Bobagem!”, pensou, e fez um gesto desinteressado como quem quer mudar o assunto.

Isso se deu antes do almoço. No meio da tarde, quando foi sacudir o avô da sesta, não conseguiu acordá-lo, nunca mais. Foi assim que aprendeu a sofrer a culpa de não rezar o ditado da Maria Rita.

Após a missa do sétimo-dia, ela veio puxar assunto. Referiu sutilmente que havia prevenido sobre o agouro. Como se ele precisasse ser lembrado, como se a culpa não batesse ponto todos os dias. Seguiram falando sobre o avô. Sentiu-se um pouco aliviado ao ouvir dela: "Culpa não serve pra nada. Larga isso". Depois, ela disse pra ele ter cuidado com outros dois sinais. O primeiro, ela falou, é quando um cachorro cava um quintal. É sinal certo de que uma sepultura terá de ser aberta. O diálogo ainda estava vivo em sua memória.

Longe, um cachorro latiu. Os ladridos invadiram-lhe a mente, seqüestrando lembranças. Estava saindo de casa numa manhã de domingo. Cruzando a porta principal, avistou Paco – cruza de ovelheiro com vira-lata – cavando de forma ávida a terra fofa, perto do portão principal. Ficou entorpecido. A frase transpassou sua mente, paralisando-o por instantes. "Quando um cachorro cava um quintal, é certo que uma sepultura será aberta." Gritou "Pára, Paco!", e arremessou um vaso de violetas na direção do cão. Precisava descobrir como anular o agouro. Maria Rita haveria de saber a reza. Começou uma corrida sobressaltada em direção à casa dela. Uma corrida curta de quinhentos metros, na direção norte.

Mal avistou o muro, começou a chamar por ela. Que lhe desse a reza; que, por amor de Deus, lhe desse a reza. Nem usou o portão. Pulou o muro baixo e, encontrando a porta destrancada, invadiu a residência, agora clamando por Maria Rita. Só parou quando a encontrou. Então, chorou por ela. Quando a polícia chegou para registrar o latrocínio, ele bem que tentou levar o delegado para ver a cova no jardim da sua casa. O delegado disse que sim, mas nunca foi.

O vento soprou mais forte, balançando os galhos da tipuana. O ponto que descia o rio crescera e agora era um barco, um skiff de competição trazendo uma mulher. Estava então a não mais do que cinco metros da margem. Com a cabeça pendendo para o lado, parecia desfalecida. Um pânico se apossou dele. Sabia bem por que estava ali: fugia do terceiro agouro, que lhe havia sido contado por Maria Rita, no dia da missa do avô. O agouro que se anunciara duas horas antes, quando saiu de casa numa corrida aflita, para vir se isolar do mundo nas pedras da margem oeste da ilha. Maldito barco.

Arrumava livros na estante da sala. No player, alguém pedia “um machado pra quebrar o gelo-ô e uma chance pra tentar viver sem dor". Ele entrou pela janela por onde também penetrava o revigorante ar fresco da manhã. Quando deu por si, estava diante dele. A voz de Maria Rita soou clara, em videoteipe: “Se um beija-flor invade a casa é sinal de mau agouro”. Por isso estava ali, vendo a moça descendo o rio num barco errante. Pensou ter ouvido um murmúrio, como um pedido de ajuda.

Sem pensar, jogou-se na água para fazer o resgate. Pulou em pé, como quem pula no vazio. Vestia jeans, tênis e camisa pólo. Ao cair na água, seus pés foram encontrar o fundo lamacento e enterram-se nele até os joelhos. Lutou contra a armadilha. Debateu-se, forçando para se desvencilhar, sentindo o ar ausente apertando o peito. Aos poucos, os movimentos vigorosos diluíram a lama na corrente e ele soltou-se da terra que o engolia. Livre do lodo, impulsionou-se com força na direção da claridade. Em braçadas desesperadas, buscou a superfície. Quando emergiu ansiando por um quinhão de ar, sua cabeça golpeou o casco do skiff. Um baque seco, único, definitivo. A água ao redor rodou enegrecendo. Sequer pôde sentir o gosto do caldo barrento transitando pela boca em direção aos pulmões. Sombras envolveram seu corpo como serpentes famintas e sugaram toda a luz que havia.

Friday, August 15, 2008

Chicletes

Se chiclete não perdesse o gosto, chiclete não teria graça.
Imaginem ficar mastigando a goma 1 hora, 2, 5, 30 horas, sempre o mesmo gosto, uma chatice enjoativa sem sentido. Ninguém iria mascar chiclete. Mas quando o chiclete perde o gosto, a gente se aborrece, sem se dar conta de que o perder o sabor é a sua própria alma. Viajar é gostoso, não é?

Tuesday, April 29, 2008

No espaço


"Pois... neste mundo nefando,"

me disse um velho aldeão,

"mais vale um pássaro na mão,

do que um padre voando."

Sunday, April 27, 2008

Como já disse, o problema é fórmico. Falta de assunto as quatro da manhã, não me acontece. Caetano na Itapema. Preciso de óculos, esse já venceu. Muito riscado e já preciso de aumento maior. Agora é enrolar até encontrar o que dizer antes de perder a tua atenção.

Estava pensando sobre ciúme. Um sentimento pervertido já no macaco. Alguma emoção basicamente útil deve ter degenerado nessa que já nem útil é. Não serve para nada. A posse exclusiva do corpo de outrem é coisa degenerada da garantia de paternidade. Sentimento que teria evoluído de qual ânsia macáquica? A mesma? Que mal pode fazer a ti que alguém a quem ames seja feliz com o corpo que tem nos braços de quem seja?

Vergonha da comparação? Medo? Ah! Mas tem os segredos partilhados, a intimidade... Bem, mas isso não é bom? Essa sensação misteriosa de, de alguma forma, compartir o tempo no planeta não é boa? Tem de ser só contigo?
Qualquer relacionamento afetivo contigo é limitante e és apenas canalha. Mas é só questão de processar a questão. A gente faz as pazes se deixas de canalhice para com quem, veja bem, afirmas amar. Isso ai não faz a menor diferença.

Saturday, April 26, 2008

No sótão


Encontrei dois velhos pergaminhos.

No primeiro, havia doze cantilenas.

No segundo, tinha uma frase apenas:

"Águas geladas não movem moinhos".

Friday, March 21, 2008

Sangue, seda e chocolate

Quem não sabe a maior distância possivel entre um coração e um cérebro humanos? Refiro-me às peças vivas e pertencentes ao mesmo naco de gente. Pois não há cérebro capaz de manter-se vivo atuando mais do que meia centena de centimetros longe da bomba que lhe toca combustível.

Digo isso para ilustrar que embora a natureza não seja, por natureza, sábia, os fatos que a conformam tem rigor matemático. Mas o imponderável pulula e desafia a severidade natural. Um mais um é dois e dois é maior do que um. Algo bom com algo bom, há de ser coisa melhor. Seda natural é estrutura agradável de tocar. Uma blusa de seda recheada de Anna Hickmann há de ser ao menos duplamente mais aprazível.

Contudo, como referi acima, armadilhas existem nas dobras da precisão. Em época de Páscoa, é possível ver propostas reconciliações bizarras. Há quem postule, por exemplo, unir espaguete a molho de chocolate. Só a menção já traz náuseas. Então, bom com bom não é, necessariamente, bom pra caralho.

Thursday, March 20, 2008

O falso ex-"doutor"

É sábado. Está com a família na serra.
De carro, se aproxima do restaurante escolhido para almoçar: um lugar muito agradável e de boa mesa, perto do centro da cidade.
Quando reduz a velocidade em busca de uma vaga improvável, um guardador uniformizado vem em sua direção.
Abre o vidro.
- Vai ao restaurante? - pergunta o homem.
- Sim. - responde.
O guardador olha ao redor, procurando uma vaga inexistente.
Retorna o olhar para dentro do carro e, subitamente, exclama:
- Doutor! Só agora o reconheci!
Olha para o homem, que mira seu rosto pelo vidro aberto. O "doutor" era mesmo ele.
- Entra na garagem!, diz o guardador, apontando para um prédio ao lado.
E continuou:
- Eu cuido deste prédio, doutor. Vou lhe deixar estacionar numa vaga - complementou, abrindo o portão elétrico com o controle.
O “doutor” deixa os acompanhantes descerem, entra na garagem e estaciona.
Saem da garagem conversando, como velhos conhecidos.

Após o almoço, degustando o expresso, o “doutor” reserva alguns instantes para decidir como será o final da sua relação com o guardador. Não era algo tão simples. Ele era o "doutor" e pelo sorriso e gentileza oferecidos ao ser "reconhecido" ficara com a certeza de que o doutor costumava oferecer ao homem gorjetas generosas pelos serviços. Quanto deveria dar? O normal? O dobro? 20 vezes? Até mais, pensou. Se o "doutor" fosse um ricaço realmente generoso, certamente oferecia muito mais. Alguns ricos são pessoas excêntricas ao extremo. Lembrou do garçom Jose Costa, do L'Hotel, em São Paulo. Uma feita, ganhou US$ 1.000 de um hóspede satisfeito. Exemplos do tipo havia outros e ainda maiores. Não era uma decisão assim simples. Tinha que ser bem pensada, pra não alcançar uma quantia que parecesse ridícula.

Ao sair do restaurante, o homem veio em sua direção. Puxou conversa sobre o almoço, antes de abrir o portão da garagem. Adentraram. Pouco antes de entrar no carro, enquanto entregava a gorjeta habitual destinada aos guardadores de carros, o “doutor” se aproximou o suficiente para que pudesse segredar ao guardador:
- Estou praticamente falido!

Wednesday, January 30, 2008

Forma.

Se a forma e o esquema
são a luz de um poema
isso, por norma,
não se traduz.

Já o sentido,
por funda sonora verdade,
é sempre bonito, na real não importa
se na minha língua
ou na tua.

Como o gosto do beijo que é bom
na minha boca ou nas duas.

E Tem Mais...!

O desenvolvimento tecnológico do qual hoje usufruímos e que resume a totalidade real de nosso progresso como espécie, resultou do abandono gradual da religião como monitora de nossa filosofia, arte e ciência.

Quando nos referimos ao fato de que progredimos mais técnica e industrialmente do que espiritual e socialmente, evitamos tocar no óbvio. Não avançamos no terreno social e espiritual, naquilo que isso tem de convivência harmônica de grandes grupos humanos ou de simples relacionamentos individuais, simplesmente porque nestes assuntos ainda não abandonamos as religiões.

Nosso progresso moral, social e individual, ainda é cerceado pela crença tola e estúpida de que existem rituais a cumprir para merecermos uma vida além da morte. Vida essa que não se comprova, mas que absurda e religiosamente é propagada de pais para filhos, como se não tivéssemos vindo para viver, mas simplesmente morrer.

A educação da maioria dos seres humanos ditos civilizados começa pela instilação covarde de uma mentira, que se algum dia teve lugar no desenvolvimento da espécie, já não tem mais. É só estorvo. Como o foi para as ciências exatas.

Chamo a atenção, quando se diz acertada e cinicamente que o homem é um animal inviável, deve-se também levar em conta que tudo o que temos para observar é uma manada que já na infância foi mutilada espiritualmente.

É isso. Só precisamos mudar as bases de nossa civilização, e de qualquer das atuais, e tudo melhora.