Sunday, September 27, 2009

A Faca de Corte Quadrado - O Caso se Complica.



Estar fazendo nada é um bom objetivo de vida. Não importa se na praia ou lugar qualquer. Os momentos de solidão verdadeira, sem pensamentos pretensamente úteis, só besteira. A luz que dança na pálpebra fechada. Qual a sensação produzida pela textura do tecido da roupa que toca e roça a pele, essas coisas que, por importância nenhuma tem a máxima.

Assim que um dos modos de estar fazendo nada é contar o que vejo, aqui. Um jornal de bairro sem expressão outra que um bom dia mais caloroso de alguém que citei por acontecer de passar na minha frente. Faço isso muito. Meu posto de observação é o deck frontal de uma padaria. Café, cigarros, às vezes pão. O importante é o café e o cigarro. Vários até acabar a dose de cafeína.

Poucas vezes acontece coisa que valha a pena sem os enfeites de que isso e que aquilo, horizonte bonito, dia chuvoso, dia de sol, enfim, o comum em qualquer papo que é esta a minha conversa. Sozinho. Conversando coisas que a garota da loja de frente (casada, me parece), linda, nem sonha ouvir de alguém. E os passantes. O bebum que volta e meia dá uma incerta aqui em casa e rouba trecos que já iriam fora. Fica no bar da esquina, quando me vê entrar no ônibus, entende que a casa está sozinha. Sabe que não tem cachorro, vem e tenta entrar. Não consegue. Quebra um vidro e pega o que alcança. Sempre mixaria, sempre incomoda.

Mas não era isso. Pensava nos tipos, nas vidas em volta dos tipos. A moça linda da loja de frente deve ser casada com o mecânico eletrônico e os dois devem ser donos da loja. Têm um carro Eclipse. Total fora do que parece poder pagar. Construí esse passado: ele ganhou num bingo. A primeira vez que vi o tal carro era tempo de prêmio desses em bingos. Não recordo o que era ali antes da eletrônica. Então: são casados, trabalham juntos e resolveram ficar com o carro (caríssimo) porque nunca mais poderiam ter um troço daqueles.

É assim que rola, aplico histórias sobre pessoas reais. Recrio partes de passados de modo a que possam resultar nos personagens que hoje se apresentam. Depois me estendo mais sobre a Moça Linda e o Cara com o Eclipse. Quero explicar que não costumo falar sobre quem não é habitual no meu pedaço. Tem muito turista, gente que chega não é novidade. Sempre tem turista turistando. É chatíssimo. Turista empesta tudo. Nativos também. Territórios deveriam ser por direito de conquista. A política do chega, expulsa ou come, cerca e mantém. De certa forma é o que faço e nem chove dentro. Minha caverna é ótima.

Mas há os que se tornam habituais de imediato. Passou batido, mas me ocorreu que pode ser teatro. Excelente, mas teatro. Gostei direto. Simpático na medida, não muito efusivo, mas chamativo por natureza. Vi que entrava na padaria. Cena comum. Voltei ao café, evitei o próximo na sequência de cigarros e tudo atrás mim explodiu em gargalhadas como há muito não se ouve. Certamente uma apresentação do Monty Python. Não era. Era o Gago.
Chegou de bicicleta. Uma coisa apodrecida, modelo ninguém rouba. Na entrada, com a voz de quem recentemente quebrou o nariz, declarou (dois ou três fregueses, eu no deck de onde nada ouvi, duas atendentes mais o caixa):

- Nã mii impoto que riiam di bim, é tri tri tri iengrraççado, ttambbém acho-cho. Ga-gago eu so-sou! Bais fanho não!

Uma figuraça. Um aposentado super engraçado. Médico ginecologista. Uma puta casa. Das maiores do bairro e não tem carro. Diz que não “brecicisa”. O doutor não apenas parece gago como nunca deixou de ser fanho, embora não admita e fique fu-furii iii e isso na bra-abesa não sai. Todos riem, ele também. Resulta que ficou conhecido como o gago que não é fanho.

Friday, September 18, 2009

A Faca de Corte Quadrado IV

Claro que tem a poética e o imaginário a respeito de médico de clube, aqueles de exame médico. Como, em tempos, com aeromoças. Algo deve acontecer ali. Porque a gata tal, fulana outra, madame aquela entram sozinhas? Isso entre hipotéticas surubas. Sonhos de invejosos na fila. Joe sabia que não era assim.

Não tinha sido médico. Nem perto disso, mas fora aluno de uma escola de medicina e dera plantão como médico de clube. Das mulheres? Sim. Algumas sensacionais. Mas fazer o quê? Bater papo a respeito da fila que hurra por mostrar as frieiras? E as muito horríveis? E pior: muita piroca. Porque “isso” tinha de olhar e nuas, xoxotinhas não. Péssima experiência. Traumática. A vida de estudante tinha sido toda ela traumas sucessivos. Mas seria médico aposentado morando bem, mas sem carro. Só bicicleta.

Seria também fanho. E gago. Uma só tirada para captar audiência: - Ga-gago, s-sim! Fa-fanho n-não! O resto da piada vinha por si. A atuação necessária para convencer que era mesmo fanho e gago, entre gargalhadas gerais, ninguém esqueceria. Óculos de sombra muito escuros permitem que não mostre a cor dos olhos. Joga dominó e às vezes xadrez, mas perde seguidamente. Faz parte do ser simpático.

Um apartamento ou casa em condomínio fechado teria sido mais prático. Mas trata-se de arte, tem de ter o estilo evidência evanescente característico de Joe. Está na cara quem fez, mas quem é esse tal que fez? Onde está?

Quando haviam investigações e a algo ia para os jornais Joe ficava tentado a ajudar e ria muito. Mais que o normal. Joe era um sujeito brincalhão, divertia-se com tudo. Um cara maduro aproveitando mais cedo o lado infantil da senilidade.
Casas com visibilidade direta eram inúteis. Bastaria estar perto da residência do alvo. Questão de ir ver e escolher a casa. Tudo divertido. Tudo mágico, tudo falso. Ficaria mais um tempo sem sanduiches de pão redondo.

Monday, September 14, 2009

A Faca de Corte Quadrado III

Obstinado, mas cauteloso, Joe cria e veste identidades como um médium incorpora. Pessoas usam máscaras sociais e isso é perfeitamente aceitável. Cínico, mas não perverso, sabe disso e o primeiro que faz é demonstrar claramente acreditar que o teatro do outro é real. Isso faz partidários que só têm a ganhar em apoiar o disfarce que Joe usar, qualquer seja.

Integrar-se a paisagem, ser comum. É novo no prédio, mas conhece o bairro. Parece que sempre esteve na padaria. Joe não aparenta a idade que tem. Joe não aparenta nada, mas optou por uma onda atlética. Aprimorar a forma física observando as servidoras da casa, com o passar do tempo, comendo alguma. A infiltração clássica. O aposentado na bicicleta costumeira integra fácil na paisagem.

Aposentado de quê? Joe foi muitas coisas, inclusive ladrão, assassino, e é interessado nessa onda. Um artista. Não mata milhões na cara dura, como os políticos, de uma forma ou de outra fazem. Dedica-se a um tipo específico. Políticos.

Como faz por amor a arte, nunca se inclui no rol de suspeitos. Age em completa segurança. É um acidente de percurso. Um agente do acaso. Quem na verdade era o aposentado simpático que esculpia homenzinhos em pedra sabão e estava sempre de bicicleta? Os indícios encontrados na casa implicariam outro político qualquer fosse o método. As investigações parariam ai. Fatos como esse explodem na primeira página e imediatamente desaparecem. Brilham para ofuscar.
Mas assassinar não aposenta ninguém, tem de ser outra coisa.

A Faca de Corte Quadrado II

Veio devagar, uma sensação de indefinível perigo, desagrado. Como se fosse inevitável ficar descalço e a meia, miserável, indesculpavelmente furada. Tirar sapatos em público sempre faz sentir cheiro de tênis. Sabe que não pode ser dele, mas vão pensar que é. Joe também sabe que é psicopata, foi ai que caiu em si.

Tudo bobagens. Do mais tenro começo. Erros sucessivos. Foi pego num Largo Engano. Aceitar um serviço tão estúpido por prazo indefinido o jogara na armadilha. Cumprir com a palavra custou a vida ao pobre e a ele problemas, um tornozelo luxado, um andar cocho talvez para sempre. Joe nunca tinha nada, saúde de ferro, apenas imaginava o pior. Como não era adivinho, não acertaria. Usava o pessimismo como uma espécie de seguro.

O gesto hábil, o instante exato em que o outro lado deve ser exposto a chama (para que o pão doure, esquente, derreta o queijo o suficiente para que incorpore o orégano, mas não queime, vários movimentos por sanduíche) numa sandicheira quadrada, deu a dica. Estava delirando.

Claro que os sanduíches podiam ser de pães franceses de 50gr comuns. Os cassetinhos. A origem de tudo havia sido um deles. Mais largo que o normal, mas ainda nitidamente elíptico, já meio seco. Atributo sem importância, o processo recupera o paladar e o farelento vira crocância (esse o segredo). Pãozinho, uma fatia de mortadela redonda e outra de queijo exata. Com a mortadela para baixo a grande moeda fica no fogo baixo até derreter o queijo. O pão é cortado e aberto, a moeda é emborcada dentro e tudo volta para a frigideira redonda. Até dourar.

É isso. Ele só piorou da cabeça. Para adaptar cassetinhos a friguideira redonda, só precisa cortar as pontas e comê-las com manteiga. Um tipo de entrada.

Vai ter de dar um jeito. Cavar não tira ninguém do buraco. Largar a pá é atitude sábia. Não vai mais trabalhar por algum tempo. Por via das dúvidas, desaparecer total. Como algo terá fazer e pode escolher qualquer coisa, entre mar quente e mordomias associadas, opta por caçar um político escolhido ao acaso e matá-lo. Sempre é um ladrão a menos e dá a chance (Joe escolhe entre os que sustentam diretamente a muitos) a que os filhos cresçam longe de pelo menos um patife. No caso, a maior influência. Pode que cresçam honestas.

Tanto pode ser qualquer um que Joe decide por um estado vizinho. Nunca esteve lá. Questão de estudo. Método. Resolver quem ser, como se apresentar, como chegar.

Friday, September 11, 2009

A Faca de Corte Quadrado.

Andava tenso. Joe Notebook não era disso, mas os últimos acontecimentos não foram conforme esperava e, além disso, não conseguia achar pães redondos. Voltara para a serra, para a calma, um lugar onde era apenas mais um morador sazonal com conta corrente na zona e muita conversa jogada fora jogando truco. Nem sempre perdia e achava isso bastante estranho. O sotaque italiano carregado, estudado e puxado para o ridículo fazia com que todos o lembrassem. Um espertinho o chamara de Mussolini, ele rira. Uma casquinada horrorosa, chamativa. Nunca mais chamaram por outra coisa. Mussolini, o da casa que brilha. Mussolini, do jipão verde sujo.

A casa redonda era assim desde décadas. Não tem com a mania por pães redondos. Comprara redonda e redonda ficaria até que outros a demolissem. A varanda, toda a volta, vidro. Dependendo o ângulo e da hora, um brilho de sol na encosta. Acesso fácil para quem estivesse disposto a uma longa e íngreme subida com buracos mais ou menos permanentes conforme a estação. O jipão verde sujo do Mussolini só às vezes descia. O mais das vezes para a zona.

Gostava de caminhar e os pães redondos que vinha tentando introduzir na dieta dos nativos ainda não tinham procura. Uma hipótese para o fim trágico dos Timbiras está na recusa em trocar a papa de inhame por purê de batatas com espinafres. Só conseguia pães no formato adequado vez por outra quando era o queridinho das moças da padaria. Nem sempre era. Se passasse muito tempo sem sair com alguma, reacendendo naqueles corações a esperança de que um dia alguma o fisgasse, começava a notar o pão mais difícil. É como são as mulheres e como Joe sabe que também é. Humanos são ratos trocadores de tudo, afeto, sentimentos... Coisas até.

Andar até a vila não era desagradável. Barrento e exaustivo, mas não desagradável. Flertava com a moça da farmácia umas três vezes por semana. Gorda, bonita, olhos bem azuis. Casada recente. Coisa entre o sucesso do penúltimo empreendimento, o caso Gorki, e o fiasco pessoal da Vigília das Camisas.

Como não gostava de trabalhar, também não gostava de lembrar. Ali era apenas o Mussolini. Moçolim para as moças da zona de puteiros. Gostavam do jipão verde sujo e era comum alguma na casa redonda. Na camaradagem do truco as chamava de esposas.

Uma delas foi mais sério. Engravidou, mas desapareceu. Tinha sido a esposa mais assídua. Ficava quieta, só queria estar ali, na casa.

Viajar nunca tinha sido opção de lazer. Jamais por prazer. Grana muito gorda ou favores devidos podiam movê-lo a executar algum serviço fora do país. Dominava alguns idiomas de forma rudimentar. Fazia questão de manter a pronúncia ridícula de modo a que fosse impossível adivinhar qual a língua mãe. Não falava com sotaque, andava sobre a linha do incompreensível. Era capaz de ir a maior parte dos países (diversos passaportes, tralha e tal), mas interesse não tinha em nenhum. Nem investimentos ou mulheres. Picas.

Uma coisa leva a outra e começou uma experiência com fatias quadradas. Se o negócio é fazer a ponto de mudar um hábito, então que seja direito. Fatias quadradas e exatas de um tamanho tal que caiba justo na nova sanduicheira quadrada. Joe não usa esmagar as bordas do sanduíche. Nem na sanduicheira redonda, a velha preferida de quase década.

Muito antes do problema da faca, onde alguns poderiam ver manifestação de psicose, já a mortadela e o queijo, por não serem localmente fabricados cúbicos apresentaram dificuldades. Conhecedor, também rudimentar, de culinária, mas apaixonado por apetrechos, Joe sabe que existem facas específicas. Os japoneses também sabem. Pode ser que existam facas de cortar quadrados, mas facas, não “carimbos” como os moldes de massa de pastel. Esses não cortam, esmagam as bordas, mutilam.

Joe considera sair à busca da faca de corte quadrado. É quando começa a cair.

Sunday, September 06, 2009

Textos SociaisDecadentes I


Sabe-se, porque nem tão burros somos, que todo político é ladrão. Não vive só de seus proventos, enriquece na carreira política (ou já é rico porque em nossa democracia o poder é hereditário, um político de sucesso elege seu filho, seus parentes), se locupleta sem o menor pudor, decência ou dignidade.

Isso sabemos. Participar dessa trama custa a vida, custa viver uma vida de merda entre patifes que se sacanaeiam tanto quanto a nós nos roubam. Os que estão no alto repartem o botim, qualquer o partido. Por mais que um diga mal do outro, ali, no bar da esquina (no caso, hotel de luxo), estão aos risos e abraços. Mas nenhum dá as costas ao outro. Ali é terra de ninguém, todos puxam o tapete de todos. Amizade é termo sem sentido.

Isso sabemos. É uma forma escrota de ganhar a vida, mentindo sempre e, claro, ensinando isso aos filhos, até pelo exemplo. Quer prá ti? É o que custa o poder que poderás talvez nunca alcançar e ficar a obedecer canalhas para sempre. Estive ente eles, são todos doentes.

Salta aos olhos: qualquer pessoa minimamente decente não sobreviverá num meio assim. Os canalhas estão no poder e de lá só serão apeados pela própria estupidez. Porque a incompetência anda junto com a patifaria. Porque seres humanos são capazes de colaborar entre si, mas macacos não são.

É preciso reduzir ao mínimo a participação na sociedade que eles dominam, aproveitar-se dela, mas viver ao lado. Nenhum causa vale uma vida sequer, quanto mais milhares, que dirá milhões.

O carro do ano não vale o tempo gasto em ganhar o suficiente para a prestação. Assim o tênis de marca ou a roupa de grife.

A sociedade de consumo é crime contra o planeta. Precisa parar. É preciso repensar o relacionamento pessoal de cada um com a sociedade, com o poder.


arnaldo sisson